Próxima parada

Era noite e estava andando na rua, quando um moço, com seus 30 e poucos anos, chinelo, camisa e bermuda, veio me perguntar se dava pra ir a pé pra rodoviária de onde estávamos. Falei que dava, era um pouco longe, mas dava. Ele agradeceu com o rosto de quem olha mas não vê, muito cansado, suado, e foi indo. Virei e chamei: “Meu ônibus passa lá perto, você não quer ir junto?” Quando chegamos no ponto, ele abriu a mochila e tirou uma bíblia. Leu um trecho em voz baixa. Perguntei se estava com fome e pegamos o que tinha perto: cachorro-quente, que ele ficou segurando em uma das mãos, sem comer.

Com a carteira de identidade amassada na outra mão, me falou que estava indo pra Brasília. Ficou sabendo que lá existe um serviço público que dá passagem de graça pra quem não tem dinheiro. Mas seu destino, mesmo, era São Paulo. “Vou pra rodoviária hoje só pra dormir lá esta noite. Amanhã, vou pra estrada pedir carona pra Brasília”.

Já dentro do ônibus, indo pra rodoviária, contou que sua mãe morreu há 3 anos. O pai está em Ilhéus, onde ele nasceu e de onde vinha, de carona em carona, até chegar em BH. Falei que, se não se importasse, compraria uma passagem pra aquela noite, pra que não precisasse ir até Brasília, e perguntei o que ia fazer em São Paulo. “Quero ir encontrar meu irmão. Vou voltar a trabalhar com ele, ele é pedreiro profissional lá”. Às 22 horas, vi o rapaz embarcando. Pouco antes, me falou, ainda, que já havia vivido uns tempos na cidade pra onde estava indo. Gostava: “São Paulo é a minha vida”, disse. É a vida de José Francisco dos Santos.

Madrugada fria

Conheci Daniela na sexta à noite. De cabelo grande, mas preso, com um rosto muito branco e de marcas de espinhas. Ela era a atendente do boteco, quem dava sorriso pros clientes bêbados que vinham pedir no balcão mais uma cerveja.

A primeira vez vi só uma mulher naquele corpo grande, de camisa branca, calça jeans e de olhos atentos aos pedidos da madrugada. Depois, percebi que a moça, mesmo no curto espaço que a separava do balcão ao freezer das cervejas, puxava uma perna.

Ilustração Poletti

 

 

Daniela anda com dificuldade. Mais pro fim da noite, olhei quando ela saiu de trás do balcão e foi recolher as cadeiras da mesa última que ainda estava na calçada do bar. Um grupo de homens conversava sobre um filme/série. Estavam alegres e com muitas cervejas dentro. Passei por eles e fui ter com a Daniela.

Você machucou a perna? Perguntei. Com dor, ela disse que está com um problema num tendão, “mas que ainda não teve tempo de olhar”. Falou que ficou 2 meses sem doer, mas que naquela noite, em que trabalhava desde 18 horas, voltava a doer. E muito.

Ela recolheu as cadeiras. Levou duas de uma vez só. Com o mesmo sorriso que recebeu a gente quando chegamos. Antes que ela voltasse, recolhi a mesa de plástico e levei pra dentro do bar.

A última mesa de plástico.

A última vez que conversei com Daniela foi muito rápido, quando paguei a conta – olhei mais para o rosto dela. Aquela mulher era uma menina, esse rosto de espinhas e essa madrugada tão fria.

Ai, Daniela, a sua solidão me dói.

O sol das três da tarde

Cruzei com um moço parado, de pé, perto da porta de um banco. Já quase terminando no caixa eletrônico, reparei que o rapaz da entrada estava, agora, atrás de mim, próximo. Saquei um dinheiro e fui saindo, quando ele se aproximou ainda mais e disse bem baixo: “Oi, você pode depositar um dinheiro pra mim?”. Magro, de bermuda e camisa, aparentava ter mais de 40 anos. Eu disse que podia, sem bem entender, ainda, se ele queria que eu colocasse dinheiro meu pra ele ou… Ele logo estendeu o braço e me entregou um envelope fechado.

E continuou falando baixinho: “É só você colocar nesta conta aqui”, e me passou um papel com uma letra diferente da do envelope com o dinheiro. Li o nome anotado junto à conta no papel e quis saber: Você é o Antônio Costa? “Sim, o dinheiro é pra mim mesmo”. Perguntei a ele pelo cartão do banco, ele não tinha. “Mas não precisa, não, dá pra depositar sem cartão”, explicou. “Deposita na minha poupança, por favor?”.

Na hora de colocar o valor, eu lembrei que ele ainda não me havia falado. “Moço, é 15 reais que tem no envelope”. E abaixou a cabeça, depois de olhar pro lado. Eu terminei, ele esperou o comprovante sair. Antônio, miúdo, até então, muito sério, abriu um sorriso e me agradeceu. E já logo foi saindo do banco, como se estivesse com pressa, muita pressa para o sol das três horas da tarde. Fazia muito sol em Belo Horizonte, às três horas da tarde.